A MÁ EDUCAÇÃO

NOVEMBRO | 2008
- artigo publicado na revista Class Casa — ano 03 . número 13
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A Má Educação
Aparentando, certamente, bem menos idade, Elena Vasilieva é uma russa de cinqüenta e poucos anos. Radicada há sete em Portugal, ganha a vida como empregada doméstica, trabalhando em várias residências lisboetas. Todas as semanas, de segunda a sexta, faz faxina, lava roupa e cozinha, pelo que recebe cerca de setecentos euros por mês. Apesar da vida dura — setecentos euros, na Europa, não compram o que se pode fazer com setecentos euros, no Brasil —, é uma pessoa leve, alegre, vivaz, de hábitos simples. Em seu tempo livre, gosta de ler e de ir ao teatro. Certa vez, pouco depois de chegar a Lisboa, foi ao Coliseu assistir a uma apresentação de balé. Saiu ao final do primeiro ato, indignada. Recusou-se a assistir a um espetáculo de dança sem música ao vivo, com os bailarinos evoluindo ao som de playback. Em sua Rússia natal, havia sido acostumada à presença de uma orquestra completa nas apresentações de balé. E também, desde a infância, a ler Tolstoy, Dostoevsky, Puskin e Nabokov. Fala com entusiasmo sobre a obra de Chekhov, talvez o seu autor favorito.
Fala-se aqui do dia-a-dia de Elena para ilustrar o que a boa educação pode fazer por um povo, e o discernimento que lhe é capaz de conferir. É certo que um pouco de inclinação natural conta, mas é necessário estudo e largueza de horizontes para se apreciar em toda a sua extensão uma apresentação de balé, uma obra de arte, uma canção. Um trabalho de arquitetura, por que não? O valor estético atribuído ao fruto de uma obra passa pelo preparo de quem a admira.
Apesar das possíveis boas intenções — e a atual situação política em nosso país autoriza o benefício da dúvida —, questiona-se aqui os resultados funcionais e estéticos da obra de requalificação da orla de Boa Viagem. A requalificação parece haver sido para pior. E o resultado, lamentável. Presumidas então as boas intenções, o quanto dessa equivocada reforma deve-se ao parco preparo de quem a promoveu?
Não se pretende aqui, nem de longe, analisar o quadro da educação no Brasil de hoje. Sobre esse, sabe-se o bastante sobre a sua precariedade. Nossas escolas são, de forma geral, ruins. Nossas faculdades, idem. Os jovens que de lá saem nem de longe apresentam uma compreensão abrangente do mundo em que vivem, nem o preparo para articular a sua expressão desse mundo, com as ferramentas que os permitam agir de forma consciente e pró-ativa. Entre eles, alguns mal sabem interpretar de forma clara um simples texto. O que dizer, então, da atuação em sociedade desses jovens profissionais? Das escolhas que fazem, das coisas que apreciam, das obras que realizam?
Voltando ao campo da música. A axé music decididamente faz, em nosso país, mais sucesso que a música clássica. Deve-se esse sucesso às qualidades intrínsecas do questionável gênero musical baiano ou à percepção que tem dele o brasileiro médio? Quantos brasileiros sairiam de um teatro ao fim do primeiro ato unicamente pela ausência de uma orquestra completa em uma apresentação de balé? Mais ainda, quantos brasileiros sairiam de uma apresentação de Margareth Menezes porque uma ou duas músicas foram tocadas em playback? O quanto o preparo dessas platéias teria a ver com a sua apreciação do que lhes é apresentado? Da música ao trabalho, à família, à religião, à vida em sociedade: o quanto a formidável aprovação pela população da atual administração federal é fruto de suas qualidades intrínsecas, e o quanto é fruto do preparo — ou de sua precariedade — de quem julga?
Os maus números da educação em nosso país são, em meio a tudo, a única coisa absoluta. Como em um ensaio sobre a cegueira, o que atravessa a cabeça das pessoas em nosso país é filtrado pela névoa branca da incerteza de sua formação.
Mas vamos nos ater, novamente, à obra de requalificação da orla de Boa Viagem. A Prefeitura da Cidade do Recife, declaradamente, afirma que a polêmica em torno da obra jamais deveria ter acontecido. Por que não? Do que a prefeitura faz, nada é passível de ser contestado? Estaria acima do bem e do mal? Ou teria a ver com a possibilidade de a atual situação só aceitar o ato da contestação quando dele é a voz ativa, e está no papel de oposição? Que pairem estas perguntas. Como a vida não é em preto ou branco, e nada é de todo mal, faça-se a ressalva quanto à nova iluminação. Ela é, sim, mais eficaz, e os postes são mais bonitos — desconsiderando-se a inadequação do material, que rapidamente oxidará à beira-mar.
Mas o fato é que — mais uma vez, resguardadas as possíveis boas intenções — o novo calçadão de Boa Viagem é feio de lascar, frágil, cafona, tosco. Achar aquilo bonito fala mais sobre o preparo de quem opina do que sobre a obra em si. Ademais, em pedras portuguesas ou blocos de cimento, a orla continua violenta e bagunçada — em outras palavras, a acessibilidade não é sequer necessária quando não é seguro, de qualquer forma, transitar. Sobre esse palco de linhas toscas, alinham-se a dança do comércio desordenado, do assalto à mão armada, das passeatas desorganizadas. Com ou sem preparo, feio ou bonito, quem ali de fato acha agradável passear? A quais turistas queremos atrair? A quais platéias pretendemos entreter?
Em Lisboa, Elena Vasilieva transita sobre calçadas em pedras portuguesas. Bem assentadas e bem mantidas. Perfeitamente acessíveis, em cadeira de rodas ou com muletas. Sobre elas, Elena não encontra frutas, verduras, biscoitos, empadas, codornas, churrascos, bode assado, peixe frito, empanados, camisetas, tapetes, redes, pufes, cofres — tudo o que se vende sob o céu da praia de Boa Viagem. Talvez uma banca de flores, ou uma mesa com castanhas assadas, mas nada assim que se torne um obstáculo à passagem, uma agressão aos sentidos. Elena segue em frente, para o trabalho, para o teatro, em sua elegância russa, de salto alto sobre escadas rolantes. Uma cidadã da atual Comunidade Européia, com a educação que sua comunidade lhe deu. E com o discernimento para apreciar o que é belo quando apresentado sob seus pés. E Lisboa? Continua linda, linda.
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