A CIDADE DOS ANJOS

NOVEMBRO | 2007
- artigo publicado na revista Class Casa — ano 02 . número 08
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A Cidade dos Anjos
Vai acontecer. Cedo ou tarde, mas vai. E é triste. Sempre se falou sobre o risco de o estado americano da Califórnia enfrentar um gigantesco terremoto, o Big One, que dividiria a região ao meio. A ameaça deve-se à sua localização sobre uma falha geológica, de 1,3 mil quilômetros de extensão, batizada de San Andreas. No interior de nosso planeta, onde se localiza a fronteira entre a crosta terrestre e os mantos de magma, há placas tectônicas que se encaixam como peças em um quebra-cabeça. Em algumas áreas da Terra, as placas deslizam umas sobre as outras, e essa dança gera um atrito tão forte que empurra a crosta terrestre para cima — isso é um terremoto. Esse é o caso da falha de San Andreas, que está entre a Placa do Pacífico e a Norte-Americana. A Placa do Pacífico, onde está situada a cidade de Los Angeles, se desloca para o norte, enquanto a Placa Norte-Americana, contendo a cidade de São Francisco, se movimenta para sul. Quando a energia concentrada ao longo desses limites é liberada, há movimentação das placas, ocorrendo uma série de terremotos com focos rasos e, portanto, altamente destrutivos. Segundo os geólogos, que tentam cravar uma data para o Big One, com a finalidade de que o governo americano e a defesa civil se previnam e protejam a Califórnia, do subsolo virá uma explosão que arremessará para os ares, a uma altura de mais de dez metros do chão, prédios, casas, árvores, pontes e viadutos. É uma pena. Porque a Cidade dos Anjos acolhe sobre o seu instável solo uma encantadora coleção de obras arquitetônicas, obras essas que vão do mais delicioso kitsch, passando pelo neoclassicismo desavisado, e chegando ao que há de melhor na produção de vanguarda.
Das açucaradas aberrações neoclássicas, a Getty Villa é a mais doce. John Paul Getty, magnata do ramo da exploração de petróleo, usou parte de sua fortuna para reunir uma impressionante coleção de arte e antiguidade, a princípio exibida em sua própria casa, um rancho sobre uma colina com vista para o Oceano Pacífico. No início da década de 70, o colecionador erigiu — ao lado de sua casa e em estilo românico, com inspiração na Villa dei Papiri, em Herculenium, próxima à cidade italiana de Pompéia — uma edificação destinada a ser a sede permanente da coleção, a Malibu Villa. Soterrada pela erupção do Vesúvio, apenas parte da construção original foi escavada. Mas, a partir das plantas baixas remanescentes, os arquitetos foram capazes de recriar as dimensões e proporções da antiga vila romana. O detalhamento dos pisos e a ornamentação das paredes vêm de uma série de outras célebres edificações gregas e romanas. A empreitada resultou em algo de fazer Asterix corar: em plena costa californiana, e equivocadamente no século XX, a delícia de qualquer romano neurótico — vinte e nove galerias distribuídas ao redor de um átrio, em uma edificação com direito peristilos, triclínio e um jardim com mais de mil espécies de plantas mediterrâneas. Cafona? Pode até ser, mas nada mais Los Angeles do que algo assumidamente – e despudoradamente cafona. Ou kitsch.
Em um passeio por West Hollywood é possível topar com uma barraca de cachorro-quente em forma de hot-dog gigante, o Tail o’the Pup. O automóvel começou a dar nova forma à Califórnia no início da década de 1920, e a concorrência era acirrada para atrair a atenção dos motoristas que passavam pelas artérias comerciais. Desenvolveu-se, então, uma arquitetura exuberante, que também servia de outdoor. A maioria dessas construções de fantasia já foi demolida, mais ainda há alguns bons exemplos, entre os quais figura Tail o’the Pup. Kitsch como um dos filmes de Ed Wood.
Mais ao norte, em Burbank, uma edificação pós-moderna traz um frontão de inspiração clássica sustentado por estátuas de 5,7 metros dos Sete Anões — aqueles mesmos, os da Branca de Neve. O Team Disney Office Building é obra de um dos mais importantes arquitetos americanos, Michael Graves, conhecido por sua habilidade em projetos que vão de grandes complexos arquitetônicos aos menores detalhes da arquitetura residencial e seus interiores. Mas em que outra cidade americana — ou em qualquer parte, na verdade — poderia Graves, membro da Academia Americana de Artes e Letras, escapar ileso de um projeto em que os Sete Anões fazem as vezes de cariátides? A Cidade dos Anjos, ao mesmo tempo em que enseja em muitos o sonho da fama e da celebridade, parece acalentar e acolher os frutos desses sonhos, sejam tais frutos as bizarrices das estrelas de Hollywood, sejam as alegorias pós-modernas de uma arquitetura alucinada. Suas ruas enchem-se de pessoas em busca de uma oportunidade. E oportunidades parecem haver, ainda que para os Sete Anões.
A mesma Disney, mais recentemente, provou que não há sonho que resista a um pedido feito com ardor a uma estrela. No coração de Los Angeles, ao lado do Dorothy Chandler Pavillion — sede da ópera da cidade —, deu asas às curvas em aço inoxidável de Frank O. Gehry, no Walt Disney Concert Hall. Lar da filarmônica de Los Angeles, a casa foi projetada para ser uma das salas de concerto mais acusticamente sofisticadas do mundo, permitindo uma intimidade aural sem precedentes, além de representar um marco arquitetônico reconhecido mundialmente. Ainda que pareça uma meia-irmã do Museu Guggenhein em Bilbao, a construção em Los Angeles parece retirar do céu azul da Califórnia um encanto ainda mais avassalador do que o da edificação espanhola. Santo de casa faz, sim, milagre. Até mesmo porque a sede do escritório de Gehry fica logo ali, em Beatrice Street. Ao lado de Craig Ellwood, Gehry é um dos arquitetos que ajudaram a fazer de Los Angeles um dos centros da vanguarda arquitetônica.
E nenhuma vanguarda estaria completa, atualmente, sem a menção de um dos seus mais endiabrados pupilos, Philippe Starck. O endereço é conhecido pelo crème de la crème de quem quer ver e ser visto na cidade — 8440, Sunset Boulevard. Colocando lado a lado o amor pela natureza, a vida ao ar livre e a atmosfera casual com um profundo senso de glamour e fantasia, o Hotel Mondrian, projeto de Starck, é a quintessência do que é a Califórnia. O lobby configura-se como um inspirado e surreal cenário teatral, repleto de diáfanas cortinas brancas, brilhantes paredes em vidro e uma eclética mistura de peças de mobília. Quando mal se dá conta, interior é exterior e chega-se a um encantador terraço, com imensos vasos que parecem ter saído direto do País das Maravilhas. Um verdadeiro céu sobre a terra. Ou talvez um oásis sob o céu turquesa. O Mondrian não tem balcões em granito ou fachadas espelhadas, coisas que assolam as hospedarias por essas bandas nordestinas. Não tem torneiras douradas, seis ou sete estrelas, nem tapete vermelho. Não tem cadeiras antigas, camas rococós nem lustres de cristal. Não tem, aliás, antiguidade alguma. E nem móveis de design, a última palavra em Milão. Talvez por isso mesmo, e por mais algumas coisinhas, é podre, podre de chique. Poucas vezes consegue-se um projeto que dependa tão pouco de recursos materiais, de grandes verbas, e que dê, ao mesmo tempo, tanto efeito. Até nas flores da decoração, descontraídas margaridas — há algo mais flower power? Há liberdade maior que a simples desatenção a qualquer convenção? Que lugar agradável e em sintonia com a cidade em que está assentado. Quem se importa se a terra pode tremer a qualquer momento, se o Big One pode sacolejar um ou dois viadutos? No terraço do Mondrian já se chegou ao céu, e que trema de inveja quem não fez aquilo primeiro.
Os Anjos, quem diria, acompanham a moda. Em várias cidades do mundo, as grandes grifes são responsáveis por muito do que é produzido em vanguarda arquitetônica. De acordo com Zaha Hadid, arquiteta iraquiana, ir às compras é, atualmente, uma forma muito eficiente de se conhecer uma cidade. Talvez a melhor para se ver o que há de novo em arquitetura. Quando o visitante chega a Londres, Tóquio, Paris ou Los Angeles, geralmente encontra apenas um ou dois novos museus de importância arquitetônica. Mas há sempre muitas lojas novas. E melhor, abertas ao público, sem qualquer cobrança de ingressos. Nos últimos anos, a própria clientela das grandes marcas passou a esperar por grandes projetos embalando os seus artigos favoritos. Se uma marca quer ter competitividade, ela terá que contratar arquitetos renomados, que concebam projetos interessantes. Para os arquitetos, por outro lado, a parceria com as grifes é estimulante, porque ambientes comerciais são, por natureza, espaços propícios à inovação. As lojas são locais bem mais voláteis, abertos à experimentação, do que, digamos, escritórios e residências. Já as marcas — grandes nomes, como Louis Vuitton ou Prada — têm o cacife e a vontade necessária para investir em bom design, mostrando assim o quando elas — e seus clientes — são antenados. Sabem que as lojas são pontos cruciais no estabelecimento da identidade corporativa.
A estonteante loja da Prada, na Rodeo Drive, seria suficiente para colocar Los Angeles nesse mapa. Projeto de Rem Koolhaas, a casa abriu as suas portas há pouco mais de dois anos. Porta, forma de dizer: um dos mais impactantes aspectos de sua concepção é a total ausência de fachada. Em sua largura total, de pouco mais que quinze metros, a loja se abre para a rua, sem que haja uma porta no sentido tradicional, e nem uma vitrine propriamente dita — o projeto de Koolhaas convida as pessoas a entrar na edificação, não colocando qualquer barreira entre a calçada e o interior da loja. O isolamento térmico é obtido através de uma cortina de ar sensível às mudanças climáticas no exterior, e que se beneficia do clima ameno de Los Angeles. Layout intrigante, materiais de ponta, perfeito acabamento e iluminação adequada fazem do número 343 da North Rodeo Drive uma atração em si dentro de uma visita à cidade.
Tal visita seria suficiente para se ter uma idéia do que é a vanguarda da arquitetura comercial naquelas paragens, não fosse um atrevido cubo cor-de-rosa plantado no número 8221 da Melrose Avenue. Com a aparência de uma gigantesca caixa de sapatos da Barbie, a loja do designer britânico Paul Smith continua a atiçar a curiosidade dos angelenos desde que abriu suas portas – e exatamente por ser muito, muito Los Angeles. Totalmente diferente da boutique da Prada, a loja de Paul Smith é uma concepção única — diferente inclusive das outras lojas do estilista. Cada boutique de Smith é diferente da outra, e reflete aspectos da cidade em que está implantada. Em Los Angeles, não é de se admirar que o britânico tenha se inspirado na obra do arquiteto mexicano Luis Barragán, escolhendo o formato retangular que tão bem se amolda à arquitetura da cidade, e pintando-o em um tom berrante de rosa, fazendo com que se sobressaia na vizinhança. Foi Smith, afinal, com seu olhar arguto para a escolha de cores, que revolucionou a moda masculina na Londres da década de 70, desafiando os padrões estabelecidos pelas alfaiatarias da Saville Row de como um cavalheiro deveria se vestir. Se, por fora, a loja em Los Angeles parece quase anônima — a não ser pelo tom de rosa — , o seu interior parece o cenário de um filme da velha Hollywood, em que cada canto assemelha-se a um estúdio, onde algum famoso ator adentrará a qualquer momento. Espantosamente, o conjunto não parece uma grande desordem, e nem uma arrumação aleatória, pois há um elemento que une tudo: o teto em vigas de madeira, parecido com aqueles dos antigos sets de filmagem. Nada mais Hollywood.
O que vale para a loja de Paul Smith vale para Los Angeles. Se um passeio por suas ruas e avenidas dá a entender que a cidade é uma mistura aloprada de estilos e formas arquitetônicas, de alguma maneira, e estranhamente, o céu azul parece fazer de tudo um conjunto indissolúvel, e puramente angeleno. Portanto, é triste. Mas vai acontecer. Cedo ou tarde, mas vai. Algum dia o Big One varrerá muito disso do mapa, e nada mais haverá para se fazer se não perguntar ao pó. E sonhar com os anjos.
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